Análise - Death Stranding
A maneira como Hideo Kojima se projeta como um autor de videogames está diretamente ligada à sua paixão pelo cinema. É da Nouvelle Vague, movimento cinematográfico de vanguarda francês, que vem o conceito de auteur: o diretor deixa de ser aquele que apenas traduz com imagens um roteiro para se tornar um visionário que usa de todos os recursos da linguagem do cinema para expressar sua visão artística de forma única e criativa. Como consequência, acaba assumindo a autoria da obra para si, mesmo que ela seja produto de um enorme trabalho coletivo. Não à toa, Kojima também é visto por muitos como uma das figuras mais egocêntricas dessa indústria.
Mesmo que Castle Wolfenstein tenha introduzido o conceito de furtividade a jogos de ação seis anos antes de Metal Gear ou que títulos independentes tenham precedido algumas das ideias do críptico P.T., não há como negar que a produção de Kojima e sua influência na linguagem dos videogames é enorme, muito disso em decorrência dessa liberdade autoral que ele cultivou em seus mais de 33 anos de carreira.
Goste você ou não de sua obra ou personalidade, aos 56 anos, Kojima detém um poder criativo como nenhum outro nesta indústria. A prova disso é sua capacidade de convencer uma das maiores companhias de videogame do mundo, dois diretores de cinema renomados, músicos premiados e um elenco digno de grandes produções cinematográficas a fazer parte um dos projetos mais excêntricos da história recente dos videogames — e de seu primeiro projeto original desde 1994.
Tal como a série Metal Gear, Death Stranding carrega as ambições cinematográficas de Kojima, o que significa que você o joga tanto quanto o assiste. Cutscene atrás de cutscene, as três ou quatro primeiras horas depositam no jogador uma tonelada de informações sobre seu mundo e personagens, em cenas tão surpreendentes e impactantes quanto confusas. Diferentemente do que estamos acostumados nessa mídia tão guiada pela familiaridade de mundos e mecânicas, leva bastante tempo até que você comece a entender o que é Death Stranding — o que ele propõe, sobre o que ele é, como se joga.
A constante brincadeira com nomes e a já conhecida obsessão de Kojima com siglas não tornam essa compreensão mais fácil. Após abrir com uma frase do escritor Kobo Abe com uma alegoria envolvendo paus e cordas, você é apresentado a Sam Porter Bridges, um entregador/carregador (porter, em inglês) de uma companhia chamada Bridges, fundada pela presidente Bridget Strand (cordão/encalhar), que têm como objetivo reconectar cidades em um EUA fragmentado. Por uma razão, não se vê metal retorcido e ruínas neste cenário pós-apocalíptico, mas sim belas paisagens naturais que mais remetem à Islândia.
Nesse mundo marcado por estranhas crateras, um arco-íris invertido prenuncia tempestades que envelhecem tudo o que tocam, trazendo à tona fantasmas invisíveis que deixam marcas de mãos por onde passam e sugam humanos para dentro de poças de alcatrão. BB, o bebê entubado de Sam, conectado a uma espécie de braço metálico, o permite detectar a enxergar esses fantasmas. Sam também é o único capaz de voltar à vida se sugado para dentro das poças de alcatrão.
Nas suas dezenas de horas de duração, Death Stranding nunca para de instigar e confundir com sua mitologia "necrocientífica" e uma arriscada alucinação sobre multiversos, que são ao mesmo tempo fascinantes e completamente estúpidas, dependendo do grau de suspensão da descrença de quem joga.
Por meio de uma infinidade de textos, mensagens em áudio, conversas via holograma e cutscenes, o jogo faz um esforço louvável em explicar suas maluquices em termos políticos, científicos e filosóficos, tudo amarrado a uma dose irritante de excepcionalismo norte-americano, especialmente quando consideramos a nacionalidade japonesa de seu idealizador.
A frase “make America whole again”, em alusão ao slogan da campanha presidencial de Donald Trump, “make America great again”, é repetida inúmeras vezes, deixando evidente a intenção de Kojima em tocar na realidade — mais especificamente, no nosso mundo politicamente polarizado e no isolamento causado pela tecnologia, em especial pela automação de serviços, como os de entrega. Não é por acaso que nossa função em Death Stranding não é muito distante da de entregadores por aplicativos, com a diferença que nosso deslocamento em seu imenso mundo aberto envolve atravessar montanhas à pé portando coisas como doses de ocitocina, hormônio que, dentre seus efeitos, desenvolve a empatia entre as pessoas.
VEJA TAMBÉM: Discutimos Death Stranding em nosso episódio especial do podcast MotherChip, sem spoilers
Em sua solitária e melancólica viagem costa à costa, do leste para o oeste, Sam precisa aos poucos integrar diferentes cidades e redutos à United Cities of America, uma espécie de projeto reconstrutivista do governo norte-americano. Isso significa conectá-las à rede quiral, uma tecnologia semelhante à internet e torná-las parte desse grupo. Contudo, pessoas alheias ao Estado, que não se vêem representadas ou que temem ataques de grupos separatistas ou isolacionistas com a associação, precisam primeiro ser convencidas por Sam de que a conexão trará benefícios às suas vidas. Entregas, portanto, são tanto uma forma de conexão quanto de persuasão.
Em seu cerne, Death Stranding é basicamente um jogo sobre transportar coisas, mas entregar um objeto do ponto A até o ponto B é bem mais complexo do que a sua tradicional fetch quest em RPGs — tanto que, do começo ao fim, o jogo é apinhado de mensagens que ensinam os funcionamentos de suas mecânicas. O jogador precisa avaliar uma série de coisas antes de aceitar qualquer encomenda ou decidir carregar qualquer objeto perdido pelo caminho. Cada pacote possui um destino, peso, tamanho, forma e estado físico. Alguns têm até condições específicas, como não imergir em água, chacoalhar ou um tempo limite de entrega, como uma caixa com criaturas vivas ou uma simples pizza.
Dependendo do equipamento usado por Sam e sua da experiência, ele pode carregar até um limite máximo de peso, empilhando as caixas em suas costas ou anexando-as em seu corpo. Quanto mais alta a torre de caixas ou maior o peso de sua carga, menor a estabilidade e velocidade de Sam, exigindo que o jogador se equilibre com os gatilhos do controle e evite certos tipos de terreno. Quedas não apenas danificam e espalham suas caixas pelo chão, como estressam o BB, esgoelando seu choro estridente através do controle.
É preciso também avaliar o caminho até seu destino para determinar o tipo de equipamento que será necessário carregar, o que também contribui com o volume da carga. Coisas como escadas, âncoras de escalada e kits de construção de torres, pontes, geradores de bateria e tirolesas não são apenas recomendadas como necessárias quando os destinos estão há quilômetros de distância, além de cânions e paredões rochosos. Eventualmente, você tem acesso a diferentes tipos de exoesqueletos e veículos movidos à bateria que agilizam as entregas.
Isso em si faz com que a locomoção em Death Stranding seja muito mais do que simplesmente manter a alavanca direcional para frente. É preciso estar sempre atento ao trajeto, planejar rotas mais eficientes usando seu mapa, gerenciar recursos e coletar o que de interessante houver pelo caminho: materiais naturais ou equipamentos e encomendas deixados para trás por outros portadores. E é aí que entra outro elemento determinante de Death Stranding: a coletividade.
Ele proporciona uma experiência de cooperação indireta entre os jogadores devido a uma série de truques que fazem com que seu mundo persistente seja compartilhado por inúmeras pessoas, dando um passo adiante ao conceito introduzido por Demon’s Souls em 2009. Não apenas sinais e avisos deixados por um jogador podem ser vistos por milhares de outros, mas também seus objetos, permitindo que você colete cargas perdidas e use equipamentos de desconhecidos. E como é aliviante descobrir que outros jogadores deixaram para você uma ponte ou uma corda quando você mais precisa!
Tudo isso é amarrado por um sistema de curtidas, que basicamente funciona como pontos de experiência. É por meio dele que o jogador se sente incentivado a ajudar os outros, seja enviando curtidas às suas construções e equipamentos que tanto lhe ajudaram, seja coletando e entregando suas cargas.
Essas curtidas são acumuladas em uma das cinco categorias que determinam o progresso de Sam e seu nível na hierarquia dos entregadores: volume entregue, tempo de entrega, elo social, condição da carga e miscelânea. Basicamente tudo no jogo é quantificado, avaliado ou convertido em curtidas: distância, altitude, trajeto, tempo, dano da carga, quantidade de itens entregues simultaneamente e por aí vai.
Ironicamente, ao mesmo tempo que essa é uma das suas maiores qualidades, é também sua maior contradição: Death Stranding segue exatamente o modelo que parece criticar, atrelando a cooperação humana à economia dos likes. Afinal, se redes sociais estão contribuindo para o sentimento de isolamento e polarização na sociedade contemporânea, por que um jogo que está diretamente tocando nessa questão faz um uso tão literal das curtidas?
Algo também soa fora do lugar quando o jogo se propõe a falar sobre uma necessidade de redescobrir a nossa humanidade enquanto nos coloca para literalmente trabalhar em simulações extremamente racionalizadas e quantificadas da realidade. A maneira como somos avaliados e recompensados em Death Stranding não é muito diferente de sistemas gamificados dos próprios aplicativos de serviços, que tratam entregadores menos como humanos, com condições físicas e mentais, e mais como robôs.
O descanso e a higiene são elementos cruciais em Death Stranding, que nos lembram de que Sam é um humano, com o jogador sendo obrigado a, de tempos em tempos, dormir, tomar banho e fazer suas necessidades. Porém ele coloca esses obstáculos à sua frente unicamente para que sua performance não seja prejudicada, uma vez que um Sam cansado vai ter menos fôlego para subir uma ladeira ou segurar a respiração perto de fantasmas. Em nenhum momento Kojima parece ter consciência dos problemas reais que tenta abordar, saltando automaticamente para uma solução ingênua e cafona de que o mundo (a “América”, no caso) precisa de união, não muito diferente de um discurso em um concurso de miss. Neste aspecto, jogos independentes como Neo Cab têm feito críticas que tangem a realidade de forma muito mais consciente, responsável e inteligente.
Felizmente, essa falha de argumentação não reduz sua capacidade de nos engajar e divertir com suas entregas e nem nos impede de sentir gratidão quando encontramos um item deixado para trás por alguém de grande valia a nós. Isso faz com que você seja incentivado a participar dessa economia de compartilhamento, doando itens que talvez tenha em excesso ou que não são mais úteis. É uma abordagem econômica menos individualista e mais coletivista, e que só parece ser possível graças à abundância de recursos que o jogo oferece aos jogadores
Nas minhas primeiras horas eu encontrei uma carga perdida do Kevin do Kinda Funny e, por mais que eu não o conheça e nunca tenha ouvido o podcast deles, eu fiz questão de entregá-la só por saber que existia uma pessoa por trás daquele objeto e que ela saberia quando eu o entregasse. No caminho eu ainda quase perdi o pacote na correnteza de um rio, o que só aumentou minha vontade de fazer esse favor a ele.
De certa forma, Death Stranding propõe reflexões sobre a própria maneira como a sociedade se organiza no espaço e no que essas distâncias implicam. É bem diferente de jogos de mundo aberto convencionais, que te oferecem cidades com percursos prontos para você percorrer. Aqui são os jogadores que precisam coletivamente encontrar formas mais eficientes ou menos perigosas de percorrer essas distâncias, e é recompensador perceber que caminhos que antes exigiam tanto esforço e atenção podem ser atravessados com tanta facilidade após a construção de estradas e pontes.
Esses perigos envolvem adentrar em áreas ocupadas por grupos inimigos (alguns que só querem a sua carga, outros que podem efetivamente te matar) e as já mencionadas chuvas temporais, que deterioram tudo o que tocam, inclusive estruturas deixadas pelos jogadores, fazendo com que eventualmente elas sejam destruídas. Ao navegar por esses locais, Death Stranding assume uma forma mais próxima de um jogo de ação furtiva convencional, permitindo inclusive o uso de armas letais ou não-letais. No caso das áreas chuvosas, o braço mecânico indica o quão próximo você está de EPs, os fantasmas invisíveis, que só podem ser vistos enquanto se está parado e perto deles. Da mesma forma, você é detectado por eles quando se move bruscamente ou faz barulho, havendo até mesmo um botão para prender a respiração.
Dependendo da ocasião, se você não conseguir se livrar das figuras humanas que saem das poças pretas que se formam pelo chão, um mar de alcatrão pode encobrir todo o entorno, trazendo à superfície escombros e ruínas de prédios, que acabam servindo de palco para batalhas com golfinhos demoníacos e outros monstros marítimos bizarros.
Ao mesmo tempo em que estes são alguns dos momentos mais alucinantes, são também os mais convencionais mecanicamente, que aproximam Death Stranding de títulos de ação e tiro, com direito a chefões gigantes que devem ser enfrentados com granadas, rifles de combate e lança-mísseis — mesmo que isso não tenha nada a ver com a função de Sam e que estes não sejam os verbos que Death Stranding está explorando.
Kojima se esforça em trabalhar a ideia de que armas de fogo são uma das razões para que o mundo esteja fragmentado, de que Death Stranding é um jogo sobre “cordas” em vez de “paus”, mas no fim das contas, ainda oferece um grande arsenal ao jogador, obrigando-o a usá-lo em poucos momentos específicos, incluindo em sequências de tiro inexplicáveis, que parecem desencaixadas do todo.
Apesar das suas contradições, Death Stranding é um feito impressionante. Kojima conduz sua trama homérica e intrincada, repleta de personagens esquisitos, com uma certa dificuldade pelo pantanoso terreno dos multiversos. Regras antes estabelecidas são torcidas e distorcidas para que novos eventos surreais emerjam, deixando buracos na trama e o sentimento de que qualquer coisa pode acontecer. Não tem a sutileza de um Twin Peaks ou a consistência de um BioShock Infinite, mas é certamente uma visão única e distinta sobre vida, morte e sociedade. Narrativamente, consegue transitar entre o ambicioso e o inovador, o clichê e o cafona.
Sua coesão aparece com mais clareza na maneira como seus sistemas dialogam entre si, com seu universo e suas histórias. Embora esteja longe de estabelecer um gênero novo, como Kojima propaga, Death Stranding valiosamente atesta que jogos de ação em mundos abertos podem ter tons mais amenos, sem que a principal forma de expressão dos jogadores seja por meio do combate. Que entregar encomendas e construir pontes podem ser verbos mais gratificantes, divertidos e envolventes em jogos do que matar ou morrer.
Death Stranding
Desenvolvido pela Kojima Productions
Distribuído pela Sony Interactive Entertainment
Disponível para PlayStation 4
Lançamento: 8 de novembro de 2019
A análise foi feita com uma cópia do jogo providenciada pela assessoria de imprensa da Sony
Nesta edição: como é jogar a série Mass Effect pela primeira vez em 2024, Loco Motive se inspira em point and clicks dos anos 1990 e mais.