Jogos em blockchain “play-to-earn” criam cenário propício para trabalho informal e precarizado
Em 2021 o mundo dos games virou palco de uma guerra. De um lado corporações, startups e entusiastas de criptomoeda conclamando o modelo play-to-earn, de jogos em blockchain, rentáveis aos jogadores, como uma revolução e o futuro dos videogames. Do outro, jogadores e desenvolvedores que acusam o movimento de um esquema de pirâmide global, atendendo a interesses especulativos e de evasão fiscal, e denunciam o impacto ambiental do blockchain. A Ubisoft se tornou a primeira publicadora tradicional de jogos a entrar no universo dos NFTs, com seu anúncio do Ubisoft Quartz, no dia 6 de dezembro, que fará uso do blockchain Tezos, menos consumidor de energia. Mas mesmo com a promessa de uma tecnologia menos agressiva ao meio ambiente, dois dias depois, a taxa de dislikes de 96% no vídeo do anúncio no YouTube virou notícia, evidenciando a reação negativa do público. Apesar do vídeo ter sido tirado do ar, o lançamento do projeto seguiu normalmente.
Em meio a esse conflito, surgem histórias de pessoas que ganham (e perdem) dinheiro com jogos baseados em blockchain, bem como uma série de dúvidas sobre questões trabalhistas em um campo novo que está longe de ser bem compreendido, quem dirá regulamentado.
Os irmãos João Lucas Teixeira, 24, estudante de teatro e editor audiovisual, e Luís Guilherme Teixeira, 21, estudante de engenharia florestal, ambos moradores da pequena cidade de Bom Sucesso, no interior de Minas Gerais, viveram uma história compartilhada por milhares de brasileiros durante a pandemia: encontraram no jogo vietnamita Axie Infinity uma inesperada fonte de renda.
A introdução ao jogo veio de um amigo da família da namorada de Luís, que fez o investimento inicial em uma conta em Axie Infinity – o que envolve comprar pelo menos três personagens NFT (axies) em um mercado, cada um custando entre US$ 90 (cerca de R$ 500) e US$ 900 (cerca de R$ 5 mil), valores determinados pelos próprios jogadores.
A convite de seu amigo, Luís ficou responsável por bater as metas diárias do jogo, recebendo semanalmente uma porcentagem dos ganhos em SLP, token baseado na criptomoeda Ethereum gerada em Axie Infinity no modo aventura ou na arena PvP, que pode ser convertida em dinheiro.
“Aí depois o João começou, por indicação minha. Aí depois a namorada dele. Depois minha namorada. Amigos meus. E assim todo mundo começou a entrar pra scholarship”, conta Luís. O irmão, João, adiciona: “eu brinco com um amiga minha que também pegou a conta que é tipo uma atualização do esquema de pirâmide”.
Nesse tipo de relação já normalizada e reconhecida pelas próprias desenvolvedoras de jogos play-to-earn, a scholarship é uma proprietária de múltiplas contas (cada uma com no mínimo três personagens, no caso do Axie Infinity), distribuindo-as temporariamente para jogadores que não têm condições financeiras de fazer essa entrada no jogo ou que querem aprender a jogar antes de fazer um investimento inicial. Assim, o dono da scholarship, que tem o capital necessário para investir em novas contas, fica responsável pelas contratações de jogadores, que vão botar a mão na massa e gerar os recursos dentro do jogo. Uma parte dos rendimentos fica com o jogador, e a outra, com a scholarship.
A proporção depende do acordo estabelecido entre as partes, mas atualmente, em uma divisão considerada justa, 60% fica com o “patrão”, e 40% com o “operário”. É um contrato informal, sem nada além da própria palavra que assegure o trabalhador de que o patrão irá pagá-lo adequadamente. Embora o jogador tenha acesso à conta temporariamente, a carteira fica com o patrão. “Eles pegam a parte deles e te repassam a sua comissão”, explica Luís. “E você não tem muito o que fazer. Se o cara quiser tirar a conta de você, mudar a senha, sacar os SLPs, não te pagar e sumir, ele pode fazer isso, não tem nada que vai impedir ele — embora haja scholarships confiáveis.”
“Você recebe a conta e tem que jogar todo dia, 7 dias por semana, mantendo uma média de SLP. Uma média de rendimento diária”, explica João. Essa média varia conforme a economia interna do jogo, bem como o preço do SLP.
João afirma que, em meados de julho, era possível obter 220 SLP por dia. “Na época que a gente entrou [em março] o SLP valia uns R$ 0,70, mais ou menos. Algumas semanas depois deu esse boom de jogadores e a moeda bateu R$ 2. Durante umas três semanas a moeda ficou acima de R$ 1. Nessa época a gente ganhou um bom dinheiro”. Sem contar as taxas de conversão de criptomoeda e de saque, que ficam com empresas de câmbio como a Binance, o montante daria em torno de R$ 10 mil em um mês: R$ 7 mil para o patrão, R$ 3 mil para o trabalhador, em uma divisão de 70/30, como era praticada nesse período de alta do SLP.
O valor, porém, não se manteve – algo comum no mundo volátil e especulativo das criptomoedas. As constantes mudanças do jogo, por meio de atualizações e temporadas, implementadas pelos desenvolvedores, que visam equilibrar a economia interna (ou atender interesses não declarados das empresas por trás do jogo) “nerfam” certos tipos de personagens e “bufam” outros. Essas mudanças afetam profundamente o trabalho e os rendimentos dos jogadores, fazendo com que, do dia para a noite, personagens e itens percam ou ganhem valor.
No começo de dezembro o preço do SLP caiu para cerca de R$ 0,20. Sua obtenção agora também está atrelada a uma classificação geral dos jogadores, determinada pelas vitórias ou derrotas no PvP, o que deu ao jogo um aspecto mais competitivo. O jogador só ganha SLP se estiver em um determinado patamar na classificação geral. Além disso, essa classificação é resetada a cada nova temporada, o que acontece a cada 40 dias ou mais.
“As contas mais fracas, que ficam em ranking abaixo de 800, não podem mais fazer SLP na aventura. Então teve uma onda de contas que foram cortadas momentaneamente. Caso elas consigam voltar para acima dos 800, voltam a ter alguma renda”, explica João. E tem outros agravantes: o limite de SLP diário que pode ser obtido no modo aventura, (PvE, em que você joga contra o computador) caiu para 75 (era 150) e o resto precisa ser obtido no modo Arena, contra outros jogadores. “Só que na Arena você precisa ter um ranking bom pra ter renda em SLP, e se você tem axies com cartas ruins você não consegue subir no ranking.” Ou seja, se uma atualização “nerfar” seus personagens (o que aconteceu com a maioria dos jogadores em novembro, na 19ª temporada do jogo, segundo os irmãos), é possível que você não tenha mais condições mínimas para começar a ganhar SLP.
E, se você for dono de uma conta, boa sorte em tentar vender seus personagens desvalorizados por um preço que te permita comprar outro mais compatível com as mudanças estabelecidas pela última atualização do jogo.
João conta que uma amiga que está na graduação e perdeu a bolsa de estudos tentou recorrer ao Axie Infinity como fonte de renda, após as mudanças. “Eram duas horas de trabalho todo dia, 30 dias por mês, sem folga, pra ganhar R$ 450. Ficou muito complicado. Compensa mais parar de jogar e buscar um trabalho comum.”
E nesse ecossistema, o jogador-trabalhador está sujeito não apenas às demandas da scholarship, sendo pressionado a cumprir metas diárias e se manter dentro de padrões mínimos de competitividade por conta das classificações, mas também às regras mutantes e imprevisíveis do próprio jogo. Guardadas as devidas proporções, não é tão diferente do motorista de Uber que aluga um carro para trabalhar na plataforma e, sujeito ao algoritmo e à crise econômica, precisa bater metas diárias para alcançar uma margem de lucro. E tudo na base da informalidade.
“Vira um compromisso”, diz Luís. “A gente viaja em família, tem primo meu jogando também. Quando se aproxima das 21h, horário limite para você cumprir suas metas, tem cinco pessoas na mesa jogando a mesma coisa.” O irmão complementa: “E quando você está numa scholarship, não existe a possibilidade de você tirar um final de semana pra descansar, ir num sítio no interior. Se você não tem internet por dois dias você perde a conta. É isso que é dito pra gente.”
Para o jogador-trabalhador em uma scholarship, não há folga nem revezamento. “A conta é individual e você tem que bater uma meta individualmente, que já é marcada pra você fazer 150 SLP por dia”, explica Luís. “Se você deixa de jogar no final de semana, sua média do resto da semana vai ser comprometida.”
Os irmãos contam que bater as metas diárias sem a possibilidade de folgar por um dia tem sido uma fonte de angústia. “Eu estou treinando o pessoal em uma scholarship e tem gente que fica muito estressada porque não consegue bater meta”, conta Luís. “Gente ficando muito cansada e estressada. Eu fiquei com tendinite nas duas mãos, dedão, cotovelo, ombro. A gente joga todo dia. Uma hora seu corpo começa te cobrar.”
Embora seja um jogo estratégico envolvendo cartas de batalhas entre personagens, Axie Infinity é baseado em muita repetição – o que não significa que as partidas não exigem uma boa dose de atenção. “O jogador põe as cartas dele, finaliza a jogada, aí você põe as suas cartas, os axies se batem. Depois a mesma coisa. Então é extremamente repetitivo e desgastante. Não é divertido”, afirma Luís. “Você pode achar divertido durante, no máximo, uma semana.”
Para João, o maior impacto tem sido nos estudos. “Eu nunca tive tanta dificuldade em ler texto da faculdade quanto eu tenho hoje. É mentalmente desgastante.” Tanto que ele tem levado a questão para a terapia. “Você ganha R$ 400 reais para gastar R$ 100 com psicólogo toda semana. A minha questão com a psicóloga nas últimas semanas era a minha ansiedade para comprar uma conta própria e não ter que bater meta todo dia às 21h.”
Dificuldade de formalização
Iago Moreira Souza, morador de Nepomuceno, Minas Gerais, fundou a Coy.GG em março. Luís e João foram duas das mais de 1.500 pessoas que já passaram pelas 400 contas que a scholarship mantém atualmente. A maioria, homens entre 23 e 35 anos, segundo Iago. Mulheres, apenas 15%. Iago considera a Coy.GG a maior scholarship do Brasil e, talvez, da América Latina. “Eu vim do meio de pôquer, tenho clubes de pôquer online, já fui jogador profissional, tenho um time de pôquer também, gosto bastante de investir. Eu vi uma oportunidade de investimento em que eu conseguiria ajudar as pessoas e atrelar também um ganho”, conta.
Inspirado pelo documentário Play to Earn, produzido por empresas ligadas ao setor de criptomoedas e NFT, que explora o impacto de Axie Infinity na economia das Filipinas durante a pandemia, Iago acredita que sua scholarship tem um papel social.
“Como a gente queria abraçar essa razão social, a gente fez muito conteúdo ensinando o beabá mesmo, para que um analfabeto digital pudesse jogar.” Para testar o modelo, passou as primeiras contas para suas tias e sua mãe, que nunca haviam jogado videogame antes. “A gente usou elas de teste, deu tudo certo e começamos a passar contas pras pessoas que realmente estavam necessitadas. Algumas sem emprego, outras que precisavam complementar renda por conta da pandemia."
Os familiares jogam até hoje. “Farmam (mineram recursos dentro do jogo) o que a gente pede. Elas jogam como um trabalho mesmo”, conta. A mãe, que é dona de uma rádio comunitária, perdeu anunciantes durante a pandemia por conta do fechamento de comércios, o que reduziu consideravelmente sua renda. “E o Axie ajudou ela a complementar a renda. As minhas tias também levam com seriedade. E acho que isso é importante porque a gente tem uma relação de jogo e diversão. Porém isso está atrelado ao Axie e tem um investidor por trás disso. Quando você entra numa scholarship, tem alguém que colocou o dinheiro que apostou em você, então você tem que cumprir o mínimo, tem que jogar os sete dias da semana, por mais que seja uma hora e meia, duas horas por dia, tem que ter esse compromisso.”
Esse mínimo é determinado pelo próprio jogo, que faz uso de uma mecânica baseada em energia similar a de jogos free-to-play. Em média um jogador leva até 2h para gastar todas as 20 energias que ele tem acesso por dia. Mas há formas de expandir esse limite, legal ou ilegalmente.
A forma legal é comprando mais axies – ou seja, injetando grandes montantes de dinheiro no jogo. Comprar 10 axies para uma conta estende os pontos de energia para 40. Com 20 axies, são 60 pontos de energia – em torno de umas 6h de jogo diárias, segundo Iago.
A forma ilegal é por meio de contas múltiplas, o chamado multiaccount. A empresa não permite que você deslogue de uma conta e logue em outra em seguida em um mesmo dispositivo, durante 24 horas. No entanto, se fizer isso em um segundo dispositivo, é possível, ainda que não seja permitido. Embora haja risco de banimento, a prática é comum, segundo Luís, permitindo que jogadores extrapolem os limites de tempo diário de jogo e aumentem o rendimento.
Embora duas horas sejam suficientes para atingir a meta diária mínima, na comunidade do Discord em português do Axie Infinity, pessoas em busca de aprovação em scholarships chegam a informar disponibilidade de até 12h por dia em seus “currículos”, em especial jovens desempregados e que não estudam.
“A galera que fala que tem 10h, 12h diárias disponíveis para o jogo é mais pelo desespero de ser contratado, porque não precisa desse tempo todo pra jogar não”, conta Iago. “Óbvio que o empenho é bacana. E a gente premia as pessoas que têm um desempenho alto aqui na Coy.GG. Temos contas padrões que a gente passa para a maioria e quando o jogador se sobressai, se destaca, a gente oferece 40 de energia para ele e uma conta mais competitiva. Assim a gente dá uma oportunidade pro cara que tá se empenhando, que quer ganhar mais, quer ser mais competitivo, e acho que isso estimula bastante a comunidade.”
Para ser um “scholar”, um jogador-trabalhador de Axie Infinity, é preciso passar por um processo seletivo e uma entrevista, como um emprego comum. “A gente tem uma equipe que fica só por conta do processo seletivo. A gente abre, faz um formulário, e depois há uma pré-seleção nesse formulário. Em seguida a gente chama pra uma entrevista no Discord, para conversar e trocar ideia. Mas mesmo assim está entrando muita gente que não tem dado conta nem de ficar acima dos 800 [de ranking]. E isso gera um trabalho muito grande pra gente, porque temos que trocar jogador, encaminhar pro treinador dar aula, e às vezes não dá resultado porque a pessoa não está empenhada, ou porque não quer ou realmente porque a pessoa tem dificuldade.”
Mas pelo fato de não haver regulamentação para essa atividade, tanto os jogadores que assumem suas 400 contas de Axie Infinity quanto os funcionários diretos da scholarship não são formalizados. E não são poucos: “Atualmente tem umas 17 pessoas só no administrativo. A gente tem a galera da staff, que toma as decisões, depois a gente tem os moderadores, os treinadores, os streamers parceiros. Tem um pessoal destinado ao controle de farm diário, fazendo planilha, quem não farmou, quem farmou pouco, se tá com alguma dificuldade para que a pessoa seja encaminhada para o treinador.”
A dificuldade de registrar a companhia tem se tornado um empecilho. “[A Coy.GG] Ainda não tem CNPJ mas o contador está trabalhando, porque é muito complicado o quesito de legalidade de criptomoeda, qual CNAE você vai escolher para montar sua empresa, qual o melhor caminho pra você pagar o imposto correto, não pagar nada a mais, se não vão te cobrar os 27,5%” explica Iago, em referência à última faixa de tributação nacional de imposto de renda de pessoa física.
“Hoje eu pago o imposto da empresa como pessoa física, mas o contador está vendo se a gente vai trabalhar como locação de ativos ou sei lá. Ele tá procurando o melhor caminho pra gente poder entrar como empresa mesmo, ter um CNPJ e um nome pra poder fazer isso tudo. E pelo que a gente tem conversado, não enquadra nem no CNAE de time de eSport, então é uma atividade bem diferente. Eu tô bem acostumado com isso porque eu venho do pôquer, que também não tem um CNAE. Hoje eu tenho uma empresa de pôquer e, só pra você ter noção, o CNAE dela é intermediação de negócios. É complicado. A gente quer pagar imposto, é ruim, é horrível, mas é complicado até nisso. Você entra em contato com a receita federal e eles não te passam nada. Se você for fazer o que eles realmente querem, você vai pagar os 27,5% que eu não acho que seja cabível nessa situação.”
“Se você não quiser pagar imposto, você não paga, porque eles não te cobram. Só que quando você começa a ganhar dinheiro, vai te dar trabalho lá na frente, porque como você vai declarar? Então eu prefiro já começar a pagar imposto como pessoa física. Por mais que eles não cobrem, eu sempre paguei imposto do pôquer, dos ganhos da Coy.GG, porque a gente sabe, é uma bola de neve. Se a gente não pagar agora, lá na frente a gente vai ter que pagar, e às vezes cobra multa, às vezes dá errado. Então é melhor ficar certinho.”
Mudanças repentinas
Por conta da atualização da 19ª temporada do jogo, que provocou uma queda no rendimento dos jogadores e aumentou a dificuldade por conta do enfoque competitivo, muitos jogadores optaram por deixar o Axie Infinity.
“A gente sofreu um nerf, os nossos axies ficaram um pouco mais fracos e para as pessoas que estão entrando e não têm experiência, se tornou mais difícil, então a rotatividade aumentou”, explica Iago. “Hoje a gente deve estar girando de 70 a 120 contas por mês. Então, embora o número de contas ativas sejam em torno de 400, de 70 a 120 delas possuem uma rotatividade mensal de scholars.
“Espero que os jogadores que estejam saindo tenham grana pra poder comprar suas próprias contas ou pra poder fazer o que quiserem. Mas eu garanto que 60% disso é porque não deu conta de jogar, não se empenhou, achou que era grana fácil e não é assim. Pelo menos as duas horinhas ali por dia você vai ter que dedicar, e dedicar mesmo, não adianta abrir WhatsApp, ver filme, jogar outra coisa junto, porque é um jogo de estratégia e se você não tiver estratégia você não vai ganhar. Tem tanta gente que trabalha aí debaixo de sol quente, de oito a dez horas e a pessoa tem a oportunidade de trabalhar duas horas no conforto da sua casa, deitado na cama, e ganhar um salário mínimo, no mínimo, e não dá valor nisso.”
Embora não seja tão comum, segundo Iago, que os scholars que abandonam a vida de mineradores em Axie Infinity comprem sua independência e invistam em suas próprias contas, esse foi o caminho seguido pelos irmãos João e Luís. Pelo fato de terem entrado no jogo como scholars no começo do ano, um pouco antes do estouro de popularidade, eles aproveitaram o curto período de alta da SLP e conseguiram fazer um bom pé de meia.
“O combinado era que eu e o Lu íamos juntar uma grana para a gente comprar uma conta para nós dois compartilharmos”, conta João. “Depois juntar mais uma grana e comprar outra. Então cada um ficou com uma conta e a gente saiu da scholarship. Se a gente não tivesse feito isso, eu não teria tido condição de juntar dinheiro e comprar outro axie”.
“O rendimento não é ótimo mas…”, diz Luís, com seu irmão completando a frase em seguida: “É três vezes mais do que jogar para a scholarship”.
Apesar do investimento de energia, tempo e dinheiro no universo dos jogos em blockchain, eles estão longe de serem evangelizadores de criptomoedas. João é o mais desconfiado. “Tem tudo pra dar errado. Eu sempre fiquei com um pé atrás. Se a conta que comprei não valesse o que eu acho que ainda consigo recuperar com ela e o dinheiro que eu vou fazer, eu não teria continuado. Porque a gente não sabe até quando isso vai durar.” Já Luís, além de manter sua conta no Axie Infinity e atuar como treinador na scholarship de um amigo, começou a procurar outros jogos baseados em NFT que possam “explodir” como Axie Infinity — mas que demandem menos tempo e esforço.
Especulação e trabalho precarizado
A discussão sobre a relação entre jogo e trabalho é mais antiga do que os próprios videogames, e aparece em algumas obras seminais do estudo de jogos, como em Homo Ludens, do historiador holandês Johan Huizinga, publicado originalmente em 1938. Porém, com os videogames e, agora, com os jogos em blockchain, essa relação vem se estreitando.
“O que a gente vê acontecer nesses jogos já acontece há décadas, só que fora do hype do blockchain”, afirma Thiago Falcão, professor na Universidade Federal da Paraíba, doutor em comunicação e cultura contemporânea e pesquisador de jogos.
“E acontece de uma forma obscura que não é do interesse das pessoas que seja chamada atenção para ela. Tem dois lugares onde essas mecânicas de trabalho precarizado e comodificação de propriedade intelectual acontecem. O primeiro está no trabalho do escritor Julian Dibbell, que é essa coisa da mineração de ouro em MMOs em geral. Então tinha um monte de gente trabalhando nisso.” Thiago lembra que até mesmo o ex-assessor de Donald Trump e aliado de Jair Bolsonaro, Steve Bannon, investiu em uma empresa de mineração de ouro no World of Warcraft, que empregava trabalhadores chineses para executar tarefas repetitivas no jogo e gerar itens, que depois seriam vendidos a jogadores ricos, especialmente nos EUA.
“O outro lado está no mercado secundário de Magic: The Gathering”, o famoso jogo de cartas colecionáveis. Segundo Thiago, é um meio moldado por especulação financeira e manipulação. “Tem um cara nos EUA que é um mega investidor, chamado Rudy, que tem um canal no YouTube chamado Alpha Investments. Esse cara é multimilionário e o principal ativo dele são cartas de Magic. Ele cria discursos sobre as cartas, por exemplo, não comprem a coleção tal, e aí três anos depois ele aparece com centenas de caixas da coleção porque as coisas vão valorizar. Então ele joga muito nisso. Ele já deu várias declarações dizendo que só investe em Magic porque sabe que as coisas que ele faz no mercado do jogo não seriam permitidas no mercado de ações. Ele já estaria preso. Então é esse tipo de coisa.”
De acordo com Thiago, a especulação em torno de cartas de Magic também é bem conhecida por jogadores no Brasil. “Esses caras têm lojas. Essas lojas têm acervos de cartas que valem entre R$ 500 mil e R$ 1 milhão. E esses caras não pagam imposto, não declaram nada. Esse é um valor que é justamente o que esses caras tentam fazer com cryptogames hoje. É um valor que a comunidade deu pra essa dimensão colecionável do jogo.”
Especulação é algo comum dentro do Axie Infinity. Um exemplo dado por Luís são os terrenos, que estão sendo vendidos a preços altíssimos. No final de novembro, um desses terrenos foi vendido pelo equivalente a US$ 2,4 milhões (em torno de R$ 13,5 milhões), muito embora, no momento, ele ainda não sirva para nada dentro do jogo. “Existe essa expectativa de quando surgir a atualização que vai implementar esse elemento no jogo. Eles meio que criaram um mapa feito desses terrenos, e nesse mapa tem recursos. Tem natureza, deserto, rios, uma estrada. Então se você tem um terreno perto da água e tem axies tipo peixe, provavelmente você vai se dar melhor. Toda essa especulação que faz o pessoal comprar as coisas. Nesse sentido o jogo vai se sustentando, com novas atualizações, novas funções.”
João adiciona: “A empresa se aproveita disso. Quanto mais rápido eles lançarem uma versão final do jogo, menos eles conseguem especular em cima disso. Vai ser uma eterna busca por uma nova atualização para que o valor do SLP suba e as pessoas continuem a render mais.”
Para Ivan Mussa, que também leciona na Universidade Federal da Paraíba e estuda a relação entre jogos, trabalho, política e cultura digital, há uma hipótese entre pesquisadores de que a natureza do jogo está mudando em decorrência de uma neoliberalização de sua prática. “O jogo está sendo gamificado”, teoriza. Segundo ele, o conceito de gamificação – que usa de artimanhas psicológicas e mecânicas de jogo em experiências de compras, consumo, treinamento e uso de aplicativos – está cada vez mais presente nos próprios jogos. “Eles têm algumas dessas artimanhas como as conquistas, as tarefas diárias, coisas que tentam te pescar pela saciedade para querer completar tudo. Uma impressão minha é que isso está se massificando e virando uma espécie de regra nos videogames.”
“Meu exemplo preferido são os jogos da Ubisoft, em que você tem experiências projetadas para o jogador realizar tarefas repetitivas. Você já sabe o que você vai encontrar, quantos tesouros, quantos mistérios, quantos personagens, quests etc. Tudo é contabilizado e quantificado como se fosse uma planilha de checklist de Excel que você está ali preenchendo.” Um dos itens NFT que faz parte do recém-anunciado experimento com blockchain da Ubisoft exige que o jogador jogue 600 horas de Ghost Recon Breakpoint para ser adquirido, o que deverá pesar em seu valor quando o item foi revendido.
Para Ivan, a repetição pode aproximar jogos do trabalho alienante, em que o trabalhador não tem a visão completa dos processos, ficando limitado a repetir tarefas mecânicas – como na cena de Charlie Chaplin em Tempos Modernos. “O trabalho digital é uma nova forma de trabalho, como por exemplo treinar inteligências artificiais, o clickwork. A Amazon tem uma divisão própria disso, o mechanical turk, em que você fica ali fazendo tarefas repetitivas. E se você pensar, não tem tanta diferença disso e ir num MMO e matar o mesmo tipo de criatura 150 vezes para farmar um item ou fazer grind pra passar de nível.”
“É diferente do trabalho de um artesão em que o cara pensa numa cadeira, numa escultura, e ele passa por todos os processos, ele está inteirado de todas as fases daquele processo: do design, escolher a madeira, as ferramentas. Ele está ali como um comandante do processo. Enquanto que no trabalho alienado, o ser humano não é mais um trabalhador, ele é uma ferramenta. Poderia ser um robô. Ele vai lá repetir aquela mesma tarefa que ele é treinado pra fazer e vira esse trabalho repetitivo que não é ruim porque repete, é ruim porque você está alheio de todos os outros processos. Você vira uma ferramenta na mão de alguém que está controlando o fluxo de trabalho.”
Isso não significa que todo jogo repetitivo é uma espécie de trabalho alienante. “Em Minecraft você pode ficar ali cavando, minerando repetitivamente, mas em algum momento você vai pegar aqueles recursos e vai tentar montar uma casa. Você se vê diante de um problema que é mais interessante, que requer outro tipo de pensamento.”
“Estar jogando pode ser percebido como algo mais digno ou menos oneroso do que lavar um banheiro alheio e aí a pergunta é: mas em que condições?”, questiona Thiago. “Porque certos mercados pagam, vamos dizer assim, de forma adequada esse tipo de serviço. Se você pensa na quantidade de pessoas que vai lavar prato em Londres ou nos EUA. É bacana? Não. É subemprego. Mas as condições de vida, de IDH, e de poder de compra, elas são maiores. Isso é fato. Relação com o salário mínimo. Ao passo que, conversa com qualquer motorista de Uber, eles vão dizer que eles tem que fazer 16 horas de trabalho por dia, todo dia, sem intervalo, pra tirar R$ 3 mil por mês.”
Para Thiago, o sistema informal das scholarships dos jogos em blockchain dá brecha a abusos. “Historicamente, condições não observadas de trabalho tendem a se tornar condições de exploração”, explica.
“Olha para essa ideia da scholarship. Ela pressupõe um cara que tem muita grana e que vai fazer especulação. Isso é uma especulação imobiliária na blockchain. O cara diz: vou pegar esses meus R$ 30 mil que eu não tô fazendo nada com eles, eles estão parados, não vão me fazer falta alguma. Porque a gente está falando desse tipo de raciocínio. É o cara que diz: bom, eu posso torrar 30 pau na balada nesse final de semana ou eu posso investir isso aqui. Aí o cara vai lá, bota esses 30 mil dentro e diz ‘se der, beleza, se não der, beleza’. Ele literalmente aliena o trabalho dos caras que ele contrata para trabalhar pra ele. Ele vai lá e diz ‘tá aqui, tô te dando as condições de trabalho, o que você ganhar é seu.’”
“E aí eu vou voltar com o paralelo com Magic. Enquanto não houver regulamentação em certas dimensões, as coisas vão tender para o lado de quem é mais forte. Isso é um corolário da sociedade. Então a questão, pra mim, não é saber se é bom ou se é ruim. É que, se não houver um tipo de acordo muito tácito e visível, eu duvido fortemente que isso seja lucrativo para quem está jogando. Isso vai ser bacana pra quem comanda a plataforma, pra quem tem dinheiro pra fazer especulação, para essas posições de poder.”
Thiago cita a greve feita por streamers brasileiros na Twitch, em resposta a uma decisão da plataforma que fez com que suas rendas despencassem, e a forma virulenta como a comunidade de games reagiu ao protesto. “A gente fez um apanhado na rede, uma coleta de tweets, e o que constatamos é que o streamer defende a posição do trabalho enquanto os próprios caras que consomem o streamer, os seguidores dele, dizem ‘pô, você quer folga para jogar videogame? Você tá pensando que jogar videogame é trabalho, maluco?’ É daí pra baixo. Então a hipótese que estou trabalhando é: nenhum trabalho com jogo vai ser considerado digno. Nenhum. Porque nenhum é hoje assim.”
“O Brasil é uma sociedade muito tradicional e conservadora. O governo está aí pra mostrar isso. Nós somos tradicionais e conservadores. Então se você olha historicamente para qualquer emprego no campo do jogo, de forma ampla, ele é desrespeitado. Ah, você vai virar músico? Desrespeitado. Diz que vai ser artista? Desrespeitado. Vai jogar futebol? Desrespeitado. A não ser que você fique rico. Aí não, vale porque você ficou rico, não por causa do que você tá fazendo.”
Em resposta à afirmação do pesquisador Thiago Falcão sobre scholarships, Iago, o dono da Coy.GG, disse: “Não existe cara que tem muita grana e nem cara que está fazendo uma especulação. Não dentro da Coy.GG. Não existem milionários e nem ninguém que possa rasgar R$ 30 mil. Foi um projeto estudado e o dinheiro investido iria sim fazer falta se desse errado. Mas aí entra a questão de todo investimento que pode dar errado. Se ele está atrelando o mercado de scholarship ao mercado de criptomoedas, que é muito difamado nas mídias (e com razão, porque com toda falta de informação está mais suscetível a golpes), ele está completamente errado. Isso é um modelo de negócio, novo, porém é um modelo de negócio. Temos toda uma metodologia de ensino, acompanhamento, aula particulares e tudo mais. Acompanhamos desde o primeiro contato até o último, não é nem perto do que ele alega.”
“Gostaria de adicionar e reforçar: somos um modelo de negócio sério, não buscamos investidores e nem estamos vendendo nenhum curso. Damos a oportunidade de quem quer jogar e não tem condição de comprar o que precisa para se iniciar no jogo, com intuito de ajudar as pessoas a conseguirem ter suas próprias contas e darem oportunidade para uma próxima pessoa. Quem não quiser comprar sua conta, será sempre bem-vindo nas nossas. Não é imposto nada, nem obrigamos nada, as pessoas nos procuram e as pessoas aceitam nosso modelo. Não é todo mundo que tem R$ 5 mil ou R$ 10 mil para entrar em um joguinho. Muita gente está passando fome e a gente está ajudando.”
Axie Infinity é a ponta de um iceberg que, a cada dia que passa, emerge um pouco, trazendo à tona não apenas uma onda de jogos em blockchain e um universo de economias virtuais mas também, na melhor das hipóteses, uma série de dúvidas quanto ao futuro. Diferentemente de outras tendências passadas na indústria de videogames, como o modelo de jogos free-to-play que vigorou com a popularização dos smartphones, os jogos play-to-earn levantam questões sérias pertinentes ao universo do trabalho, ainda pouco estudado e compreendido no âmbito dos jogos digitais, especialmente no Brasil – para não falar do já sabido impacto ambiental. “Não tem verba para pesquisa de videogame [no Brasil]”, explica Thiago. “Enquanto isso você tem não apenas o Jair Renan Bolsonaro mas a direita como um todo, olhando para videogame, comprando videogames, usando videogame, e não tem ninguém para entender.”
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