Como a Brasoft desbravou a localização de games brasileira há mais de 20 anos

A localização de jogos para o português brasileiro tem se tornado cada vez mais comum, dado o fato de que o Brasil está entre alguns dos maiores consumidores de games do mundo. Mas embora essa seja uma realidade relativamente nova nos consoles, nos PCs jogos são amplamente localizados para o português há mais de 20 anos. A extinta Brasoft, fundada em 1984, foi uma das pioneiras a localizar e dublar jogos para a nossa língua, sendo responsável pela excelente localização de Grim Fandango, um dos melhores trabalhos de dublagem já feitos para jogos no Brasil, disponível na edição remasterizada do clássico, lançada em janeiro. Mas como a Brasoft, há quase duas décadas, conseguiu evitar os tropeços que os estúdios atuais ainda cometem na dublagem de jogos?

Considerando as recentes polêmicas com a dublagem de games no Brasil, e aproveitando o fato de que nós mesmos do Overloadr estamos resgatando algumas edições brasileiras de jogos lançados para o PC nos anos 90, para nossas séries HRQ vs FMV e Driblando Dublagens, resolvi remontar um pouco da história da Brasoft.

Rogerio Maudonnet em seu atual estúdio

Rogerio Maudonnet em seu atual estúdio

Com um pouco de pesquisa, descobri que o ex-gerente de localização da Brasoft, o compositor e produtor Rogerio Maudonnet, possui atualmente uma produtora de áudio em São Paulo, responsável por jingles de grandes campanhas publicitárias. Após um contato inicial, consegui agendar uma entrevista.

“Quando contei para um amigo, que também trabalhava na Brasoft na época, que iria conversar com um jornalista sobre a história da empresa, ele até brincou ‘você vai falar com um jornalista ou um arqueólogo?’”, me disse, às risadas, enquanto me apresentava seu estúdio atual.

Vinte anos atrás, Maudonnet trabalhava em outro estúdio, chamado Caracol, de propriedade de Pedro Milliet, primo do fundador da Brasoft, Paulo Milliet Roque. Na época, o estúdio, que já havia produzido trilhas sonoras de séries de TV, incluindo O Mundo da Lua, trabalhava na tradução de enciclopédias digitais interativas em CD-ROM, que na era pré-internet faziam bastante sucesso. “Ali, já naquele momento, a gente já se deparava com problemas de localização”, diz Maudonnet, antecipando uma questão que havia preparado para o final da entrevista. “Você via que muitos produtos não estavam prontos para serem localizados.”

“Parte da boa localização depende da empresa que está produzindo o produto criar um kit de localização bom”, explica. “Havia empresas que não pensavam nisso, e eu não sei como está hoje, mas nos anos 90, mesmo nos títulos que a Brasoft localizava, a gente já pegava algumas coisas que a gente olhava e pensava ‘hmm isso aqui vai dar problema’.” Considerando a qualidade geral da dublagem para videogames da atualidade, é evidente que a questão levantada por Maudonnet perdura até hoje. “Mas eu não culpo muito quando uma dublagem ‘dá errado’, porque muitas vezes o responsável não estava com um bom material na mão.”

Maudonnet explica que todo jogo a ser localizado deve trazer um kit que reúne a documentação necessária para o processo de localização, incluindo o script para a gravação do áudio e detalhes técnicos. “Ali a gente tinha o script, os formatos dos arquivos e alguns parâmetros que você tinha que estabelecer. Na parte de diálogo, a gente chegou a pegar coisas como planilhas de Excel em ordem numérica. Arquivo 001, arquivo 002… são frases soltas, jogadas, que você não sabia o contexto. É o tipo da situação que você olha e já sabe que aquilo vai dar errado.”

A descrição de Maudonnet me lembrou instantaneamente de Mortal Kombat X, que parece ter erros de tradução ocasionados por conta da falta de contexto. Em certo momento do jogo, por exemplo, Sub-Zero pergunta à lutadora Cassie Cage (dublada por Pitty, o que, por si só, já é uma escolha questionável) “onde estão seus companheiros?”, ao que ela responde “não precisa, eu tenho isso”, nos deixando com um ponto de interrogação pairando sobre nossas cabeças. Isso o que? É provável que no diálogo original Cage respondesse algo como “I don’t need them, I got this”, que no contexto da cena seria algo como “não preciso deles, posso cuidar disso”, mas que por falta de contexto, a tradução acabou sendo feita às cegas, caindo em armadilhas – bem como o exemplo dado por Maudonnet.

Ele explica que, diferentemente de um filme, no qual o dublador tem não apenas a fala original como a cena em si como referências para dublagem, em jogos, às vezes ele sequer tem acesso aos arquivos de áudio originais.

“Neste aspecto a LucasArts era fantástica”, lembra Maudonnet. A Brasoft lançou no Brasil dezenas de jogos do saudoso estúdio de games de George Lucas, sendo o inesquecível Full Throttle o primeiro jogo legendado pela Brasoft, em 1995. Daí para a excelente dublagem de Grim Fandango, foram apenas três anos.

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Um estúdio só para a Brasoft

“Eles eram muito detalhistas”, conta, sobre a LucasArts. “Lembro quando a gente fazia a localização de jogos de Star Wars, os kits de localização vinham até com o efeito que eu tinha que usar para os stormtroopers. A curva de equalização, o nível de compressão… era tudo muito minucioso e por isso as chances de dar errado eram minúsculas.”

Em vez de se limitar a um simples script, a LucasArts enviava à Brasoft os áudios originais, as cutscenes, os storyboards e os textos dos diálogos repletos de indicações, para guiar a atuação do dublador. Antes do processo de dublagem em si, eles mandavam desenhos de todos os personagens, acompanhados de fichas técnicas que detalhavam suas personalidades, caráter e atitudes – “é como a Disney faz até hoje”, diz Maudonnet . Os testes de vozes originais vinham no pacote. “Fazíamos nossos próprios testes de vozes, mandávamos o que nós achávamos legal e, felizmente, não me lembro de eles terem desaprovado nada. Eles gostavam muito das sugestões que a gente dava”, conta o produtor, claramente entusiasmado em relembrar este período da sua vida.

Em meados de 1997, o estúdio Caracol, que até então era contratado pela Brasoft para trabalhar na dublagem de seus jogos, foi comprado pela companhia. “O Paulo Roque fez uma oferta de compra do estúdio, por que em vez de terceirizar, como vinha fazendo, ele preferia ter um estúdio próprio, dado o volume crescente de localizações de jogos. Foi na contramão que todo mundo faz, mas foi legal, e aí ele comprou o estúdio.”

O estúdio Caracol ficava em uma casa no bairro da Pompéia e “a Brasoft, que ficava perto do Aeroporto de Congonhas, num galpão, levou toda sua equipe de localização para o estúdio”, conta Maldonett. “Nós estávamos em umas dez pessoas. Então era muito legal que qualquer dúvida de texto que eu tinha, eu falava com as meninas da editoração. O Rafael (que te chamou de arqueólogo)”, diz a mim, “que era o testador e programador, estava ali do meu lado, então se eu tinha alguma dúvida de contexto na hora de gravar, eu perguntava ‘cara, você jogou esse aqui? Por que o cara fala isso?’ Era muito legal, muito divertido.”

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Na época, o estúdio Caracol já contratava dubladores profissionais de filmes e desenhos animados para games, mas Maudonnet sentia que, por eles estarem tão acostumados à dublagem de cinema e TV, sentiam-se um pouco inseguros para dublar jogos, sem referências visuais. “Quando o estúdio foi comprado pela Brasoft, a gente pensou: ‘e se montarmos o nosso time de dubladores?’ A gente começou a botar anúncio nos teatros e surgiram pessoas interessadas em fazer o teste. A gente ficava dias fazendo testes, e era um pessoal, vamos dizer, cru em técnicas de gravação, mas muito bom de performance. Então foi muito interessante essa transição. E foi com essa galera que a gente gravou o Grim Fandango.” De acordo com Maudonnet, pelo menos 20 atores participaram do projeto, dublando em torno de 6.200 arquivos de áudio, o maior projeto de dublagem da história da Brasoft.

“Depois de gravar, o que já era bastante trabalhoso, tinha também toda a logística de editar aquele material, eliminar o que não seria usado, processar o áudio (uma vez que todos aqueles arquivos precisavam ficar com o mesmo volume) e em seguida, de organizar isso em diferentes pastas. Tivemos até que chamar gente de fora para ajudar porque o volume era muito grande”, conta.

A cultura interna do estúdio permitia que os funcionários lidassem com o trabalho volumoso à sua maneira, o que geralmente envolvia editores e testadores varando a madrugada, acompanhado de pizzas e refrigerantes. “Os caras eram muito bons. O Rafael Matsunaga (hoje campeão mundial de iôiô), por exemplo, achava erros que a própria LucasArts não achava, os quais reportávamos a eles.”

“Num jogo que tem mais de 6 mil arquivos de áudio, para deixar um erro passar era fácil, era quase que provável, mas de alguma forma, acho que no Grim Fandango a gente conseguiu.”

Muitos dos dubladores de Grim Fandango hoje são atores e diretores aclamados, como Guilherme Sant’Anna, responsável pela voz do protagonista Manny Calavera, ganhador do Prêmio Shell de Teatro, e Sandra Corveloni, que além de ter ganhado o prêmio de melhor atriz no Festival de Cinema de Cannes por Linha de Passe, de Daniela Thomas e Walter Salles, atuou em diversas séries e novelas da Globo.

Maudonnet diz ter ficado surpreso que a remasterização de Grim Fandango viesse com a dublagem original, feita por eles. “Alguém deveria receber por isso, em relação aos direitos autorais. Eu não sei como era o contrato da época, até por que não tinha acesso a essas coisas. Sei que existem contratos ad eternum, então de repente foi um contrato desses. Mas pensei nisso por que um monte de gente me perguntou ‘a gente não vai receber nada não?’ Teoricamente a gente teria né?”, me conta, rindo.

Depois do Grim Fandango, cuja versão nacional, localizada durante três meses, chegou simultaneamente aos EUA, a LucasArts quis repetir o processo para os lançamentos de todos seus jogos no Brasil

“Fico muito feliz que a dublagem seja reconhecida até hoje, por que fizemos com muito carinho. A gente sabia que tinha um produto legal em mãos e todos nós curtíamos muito.”

No final dos anos 90, o estúdio tinha um volume grande de produção, e até jogos menores acabavam recebendo localização, incluindo dublagem, uma vez que não compensava para a Brasoft manter seu estúdio parado. Era um trabalho que se estendia até o design gráfico, dado o fato que, além dos manuais em português, havia jogos cujos títulos e logotipos eram localizados.

Maudonnet conta que os simuladores de voo, embora envolvessem poucos atores, eram difíceis de dublar, devido o realismo dos jogos, o grau de exigência dos jogadores mais fanáticos e os termos técnicos. “A gente tinha um major da esquadrilha da fumaça como nosso consultor”, revela. “Na hora da tradução, passávamos tudo para ele. Ele dava uma olhada e corrigia os termos técnicos que estavam errados. Tinha esse cuidado.”

O produtor lembra que alguns desenvolvedores eram bastante exigentes e, vez ou outra, enviavam um representante para conhecer o estúdio de localização, para certificarem-se de que seus produtos estavam em boas mãos. “Uma vez veio até um cara da Microprose, durante a dublagem de Falcon 4.0, para checar nosso estúdio. O pessoal não botava fé de que dava para sair direito no Brasil. Então de vez em quando aparecia um gringo lá no estúdio para ver como a gente trabalhava, que equipamentos e microfones usávamos. Aí eles viam que estava tudo certo e diziam ‘bom, então vamos tomar uma caipirinha né?’”, conta, aos risos. “Eu até entendo a desconfiança dos caras, mas a gente trabalhava com equipamento de ponta, não tinha gambiarra.”

Uma breve história de sucesso

De acordo com Maudonnet, a pirataria foi a principal razão para a Brasoft ter fechado as portas. Segundo ele, a Brasoft pagava valores elevados pelo direito de distribuição no Brasil de jogos da LucasArts, Sierra, Microprose, Ubisoft, dentre outras companhias. Porém, com o avanço da pirataria e a queda nas vendas dos produtos oficiais, estes custos, além dos gastos com localização e embalagens, começaram a pesar.

Eles falavam ‘você vai lançar meu jogo no seu país, mas você tem que vender no mínimo, sei lá, cinco mil cópias.’ E se a gente não conseguisse vender cinco mil, a gente tinha que pagar os royalties pelas cinco mil cópias mesmo assim”, explica Maudonnet. Empresas maiores, como a Sierra, fechavam acordos de vendas de pacotes, os quais continham um jogo de grande expectativa e outros cinco produtos menores, que nem sempre atraiam o interesse dos jogadores. “É o tipo de coisa que produtoras de filmes e seriados fazem com emissoras de TV.”

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Em uma das primeiras e evidentes medidas de contenção de gastos, a Brasoft moveu o estúdio que ficava na Pompéia para sua sede em São Caetano, juntamente com seu centro de distribuição. “Aí foi um horror”, lembra Maudonnet. “Já não era a mesma coisa. Ficávamos com o pessoal que embalava. Nada contra, mas as atividades se chocavam. Como nós trabalhávamos com a parte de criação, não tínhamos horário fixo – às vezes chegávamos tarde, às vezes saíamos tarde, ou varávamos noites. O cara que trabalha na confecção não entende isso, muito menos os surprevisores deles. Então surgiram alguns conflitos.”

Neste período, do começo da década de 2000, o encolhimento da Brasoft começou a ficar cada vez mais evidente: manuais que não eram mais impressos e vinham em arquivos digitais em PDF, caixas que deixavam de ser grandes e vistosas, com detalhes em alto-relevo e com abas que se abriam, para se tornarem embalagens comuns de plástico etc. Em pouco tempo, a contenção de custos atingiu a equipe de localização, e a maior parte dos jogos passou a ser apenas legendada para o português. Ou nem isso.

Inseridos no núcleo da empresa, Maudonett e sua equipe passaram a ter acesso ao burburinho diário sobre o estado da Brasoft. “E aí a gente sabia que existiam alguns problemas: produtos estavam ficando caros, pirataria avançando. E nessa época a gente começou a ver versões piratas dos nossos jogos antes mesmo de lançarmos – o que era sempre assustador. Aí os projetos de localização começaram a ficar mais escassos, ou menores – às vezes só legendávamos mesmo.”

Então começaram a surgir os cortes. A Brasoft mandou metade de seus funcionários embora, e com eles, a equipe de áudio – Maudonnet incluso. “Desmontaram tudo. Quando saí, montei meu estúdio e, por já ter o know how, continuei fazendo coisas para eles”, lembra. “Isso durou um ano, mais ou menos. Depois disso a Brasoft fechou, no começo da década de 2000.”

Após o fechamento da Brasoft, Maudonnet acabou se focando na localização de softwares educativos da divisão de produtos educativos da Brasoft, a Divertire, responsável pela série Coelho Sabido, que se manteve em pé. Na época, o produtor chegou a buscar parceria com outras distribuidoras, como a EA e a Greenleaf (que lançou no Brasil, em versões dubladas, Max Payne e Legacy of Kain: Soul Reaver), mas elas já trabalhavam com outros estúdios. Sem projetos de dublagem em vista, Maudonnet passou a se dedicar a outras coisas que lhe interessavam, como composição de trilhas sonoras.

Com a pirataria desenfreada e ainda sem representação oficial de empresas como Sony e Nintendo no Brasil, a década de 2000 foi fraca em projetos de localização de jogos. Foi a partir do final de 2006, com o lançamento oficial do Xbox 360 no País e o grande investimento da Microsoft na região, que começamos a voltar a ter contato com mais dublagens, desta vez nos consoles, em jogos como Viva Piñata e Halo 3, dublados em estúdios fora do Brasil. Nos anos seguintes, com o mercado de games mais estabilizado e uma representação cada vez maior de grandes empresas, como a Blizzard, a dublagem de jogos voltaria a florescer, tanto nos consoles quanto no PC. Atualmente, a localização para o português brasileiro, seja em jogos mobile ou grandes produções, está mais para norma do que para exceção. Ainda assim, com quase duas décadas, boa parte da produção da Brasoft nesta área continua sendo referência.