Beyond Good & Evil e o papel do jornalismo em governos opressores
Olevante civil contra tiranias e governos opressores ou corruptos se repete na história da humanidade desde o início dos tempos. E não à toa, revoluções são constantemente retratadas na arte e no entretenimento. Nos videogames, é o tema central de centenas de jogos: de Final Fantasy VI à Wolfenstein II: The New Colossus, de Twinsen’s Odyssey a BioShock Infinite.
De uma forma ou outra esses jogos evocam os símbolos e os valores dos movimentos civis e revolucionários, nos colocando para lutar pela liberdade de um povo e por direitos iguais. E, na prática, isso sempre envolve se unir a grupos de resistência e atuar contra um regime ditatorial ou alguma forma de poder estabelecido e autoritário.
Beyond Good & Evil, do francês Michel Ancel, criador de Rayman, possui uma trama política que parece mais condizente com o mundo atual do que o de 2003, quando foi lançado. Apesar de pegar emprestado o nome de Além do Bem e do Mal, do Nietzsche, ele traz mesmo alguns conceitos do romance distópico 1984, de George Orwell, nos mostrando como se constrói um cenário no qual uma população permite ser controlada por um grupo militar autocrático, sem questionar seu controle sobre a mídia e as liberdades individuais.
Aqui a gente controla Jade, uma fotojornalista desempregada e sem dinheiro para pagar sequer sua conta de luz — o que talvez seja uma alusão à crise do jornalismo impresso do começo da década de 2000, quando o jogo foi escrito e lançado.
Em Hillys, um pequeno planeta multiétnico, espécies de diferentes origens convivem pacificamente mas um inimigo atormenta suas vidas: os DomZ são uma raça alienígena hostil que há 20 anos ataca Hillys constantemente, aterrorizando a população e raptando indivíduos. Com a promessa de defender o público do inimigo, uma força militar chamada Alpha Section se instala no planeta sob o pretexto de garantir a segurança e combater os alienígenas. Assim, como em 1984, “guerra é paz”.
A partir daí, o que se vê em Hillys é uma ditadura, na qual toda a mídia é controlada pela Alpha Section, que transmite propaganda à favor do regime 24 horas por dia, em telas espalhadas por todo o planeta. As mensagens evidentemente enaltecem a atuação da milícia e acusam o grupo de resistência Iris de terrorismo. E assim, a Alpha Section mantém o controle da informação e da opinião pública, mesmo que os indivíduos continuem desaparecendo durante as invasões dos DomZ.
A grave situação financeira de Jade a leva a aceitar um trabalho arriscado, sem perceber que se trata de uma prova preparada pela Iris para testar suas habilidades investigativas. Cumprida a tarefa, ela e seu tio Pey’j são levados ao centro de operações do grupo, onde são apresentados a uma nova perspectiva sobre o regime: ao contrário do que se propaga, os militares da Alpha Section possuem um conluio com os DomZ e estão envolvidos nos desaparecimentos de civis. Jade então é recrutada e encarregada de se infiltrar em instalações da milícia, registrar atividades suspeitas e expô-las ao público, além de resgatar um agente da Iris capturado e torturado pelos militares.
O que Jade descobre é ainda pior do que previsto: um esquema de tráfico humano sinistro orquestrado pela Alpha Section e pelos DomZ, que tortura e encaixota as vítimas como se fossem mercadorias baratas para então serem enviadas para a lua de Hillys, onde são entregues para a espécie alienígena.
É neste ponto do jogo em que notamos o poder que Jade tem em mãos: a capacidade de abrir os olhos das pessoas por meio da informação. Para isso, usamos a câmera fotográfica para registrar todas as etapas do esquema diabólico e enviamos as fotos para a Iris, que por sua vez as publica em reportagens denunciando a corrupção do regime.
Embora seja uma representação romantizada do jornalismo investigativo, que é certamente menos intenso do que suas lutas corporais e batalhas interespaciais, BG&E é um dos jogos que melhor mostra a importância da livre imprensa para a democracia. Após as primeiras denúncias, a população começa a se rebelar contra a Alpha Section e se unir aos opositores da Iris, que até então não tinham a confiança do povo. Quanto mais reportagens são produzidas, maiores se tornam as manifestações. O ápice se dá quando, em uma operação de sabotagem, a reportagem completa, contendo todas as fotos tiradas pelo jogador ou jogadora, é transmitida para todas as TVs instaladas em Hillys, o que serve de estopim para uma revolução.
Em uma entrevista publicada no período de lançamento de Beyond Good & Evil, o diretor Michel Ancel explicou que, originalmente, ele se chamaria Between Good & Evil, ou seja, “entre o bem e o mal”. Ele diz: “Para mim, o significado deste título é que você está sempre no meio de um conflito interno ou externo, de acordo com a concepção do bem e do mal daqueles que nos governam. No jogo e no nosso mundo, propaganda pensa por você, nos é dito quem são nossos inimigos e quem são nossos amigos. Mas se você for além das aparências, descobrirá ‘sua’ verdade.”
Embora Beyond Good & Evil tenha sido escrito e desenvolvido em um período anterior às redes sociais, quando a informação ainda era centralizada pela imprensa tradicional, tanto seu conteúdo quanto o comentário de Ancel ainda são pertinentes à atualidade. Eles falam sobre o poder da propaganda, da desinformação, da narrativa simplista que separa os “bonzinhos” dos “malvados”, que há alguns anos se manifesta de forma mais orgânica por meio de redes sociais. Na forma de fake news.
A Enciclopédia Britannica define propaganda como um “esforço sistemático para manipular crenças, atitudes ou ações de outras pessoas por meio de símbolos (…). Deliberação e uma ênfase relativamente forte na manipulação distinguem a propaganda da conversação casual ou a troca livre de ideias. O propagandista tem uma meta específica ou um conjunto de metas. Para alcançá-los, ele deliberadamente seleciona fatos, argumentos e exibições de símbolos e os apresenta de maneiras que ele acha que terão mais resultado. Para maximizar o efeito, ele pode omitir fatos pertinentes ou distorcê-los, ou tentar desviar a atenção dos reatores (as pessoas que ele está tentando influenciar) de tudo, menos de sua própria propaganda.”
E a mensagem que Beyond Good & Evil nos transmite é que a imprensa livre, comprometida com a informação transparente, a ética e os interesses da população é um instrumento inseparável da democracia.
Nas eleições brasileiras de 2018, uma pesquisa do Datafolha apontou que 44% dos eleitores usavam o WhatsApppara se informar, mas um estudo realizado pela USP, UFMG e Agência Lupa constatou que apenas 4 das 50 imagens mais replicadas no aplicativo durante as eleições eram verdadeiras. Em meio a essa guerra de desinformação promovida no WhatsApp e em redes sociais, a imprensa foi a única fonte realmente confiável de informação. A propagação de notícias falsas foi tão grande que diversos veículos se dedicaram em desmenti-las, com iniciativas de fact-checking. Não à toa, governos diretamente beneficiados pelas fake news, como o de Trump e o de Bolsonaro, demonizam a imprensa e seu compromisso com a verdade.
Embora tenha mais de 15 anos, Beyond Good & Evil parece fazer ainda mais sentido nos dias atuais. Apesar de simples, sua trama é eficiente em mostrar uma parte da narrativa da construção da autocracia: a da criação de um inimigo imaginário para a disseminação do medo, para que então, sob o pretexto da segurança, possa se conquistar o apoio popular. E igualmente poderosa é sua mensagem, ao nos lembrar de que informação é a nossa maior arma contra o autoritarismo.